RIO – Seria muito simplório
apresentá-la apenas como negra, mulher e oriunda de classes menos
favorecidas. Lusilinda Valois é uma baiana de Salvador que, aos 69 anos
de idade e após quase uma década de persistência, tomou posse como
desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia, no último dia 20, ciente
que terá de se aposentar compulsoriamente daqui a pouco mais de um mês,
quando completa 70 anos. Na véspera, o tribunal acatara decisão unânime
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de promover Luislinda ao novo
cargo.
Com mais de 50 anos dedicados ao serviço público, a história de
vida de Luislinda se confunde com a luta contra a discriminação racial
no país. Considerada a primeira juíza negra do Brasil, ainda criança foi
aconselhada por um professor a abandonar os estudos e servir feijoada
na casa dos brancos. Filha de uma lavadeira e de um motorneiro de bonde,
conheceu de perto a miséria e os percalços da vida. Criada na capelinha
de São Caetano, bairro da periferia de Salvador, perdeu a mãe aos 14
anos e ficou responsável pela criação de três irmãos mais novos.
- Com rédeas curtas - ela faz questão de frisar.
Trabalha desde criança, quando catava mariscos para ter o que comer
e também para ajudar no orçamento da casa, além de lavar e passar roupa
para as famílias mais abastadas. Hoje, depois de 27 anos de
magistratura na Bahia, Luislinda não demonstra o menor ressentimento em
relação ao tal professor que um dia, lá atrás, a desaconselhou a
estudar.
- De certo modo, foi o que me deu determinação - diz.
A desembargadora há muito tempo se tornou uma espécie de porta-voz
das principais questões enfrentadas pelos negros no Brasil,
especialmente os da Bahia. Acostumada a lidar com as dificuldades, seja
devido à sua religião - o candomblé - ao seu modo de vestir ou de usar o
cabelo – seu penteado afro é famoso - , ela sabe que essas são atitudes
que ainda dificultam a ascensão dos negros no país.
- Uso minhas guias, celebro minha religião e sei que isso sempre gerou muito preconceito entre os magistrados.
Preconceitos à parte, Luislinda diz ter sofrido também com o que
chama de falta de apadrinhamento. Antes mesmo de ser juíza, quando foi
aprovada em primeiro lugar, em nível nacional, no concurso para a
procuradoria, em 1978, não lhe foi dado sequer o direito de optar a
ficar em Salvador.
- Aquele que foi aprovado em quarto lugar tinha padrinho e acabou
ficando com a vaga na capital baiana. Eu fui para o Paraná, onde assumi a
chefia da procuradoria do antigo DNER, hoje DNIT. De lá para cá muita
coisa mudou. Eu voltei para a Bahia, fui aprovada no concurso para a
magistratura, hoje sou desembargadora, mas o preconceito e o
apadrinhamento ainda existem – revela.
Em 1984, quando Luislinda, já juíza, voltou para Salvador, foi
designada para trabalhar nas comarcas do interior. Foi parar em
Paramirim, no sertão baiano e, como muitas comarcas da região estavam
desprovidas, ela acabou trabalhando praticamente em todas elas. Foi
então que viu de perto como o povo tinha receio de lutar por seus
direitos.
- A Justiça tem prédios muito suntuosos, que oprimem os menos
esclarecidos. Muito embora eu nunca desprezasse os mais aquinhoados,
sempre cuidei dos mais pobres - confessa a desembargadora, responsável
por implantar na capital baiana a Justiça Bairro a Bairro, programa
muncipal que percorre a periferia de Salvador prestando serviços básicos
à população, como um simples registro de nascimento. Luislinda foi quem
criou, também, o Juizado Marítimo que, numa embarcação, atende aos
moradores da baía de Todos os Santos.
É conhecida por ter sido a primeira juíza negra a proferir uma
sentença contra o racismo no país. O caso, de uma doméstica que foi
acusada de ter roubado um frango e um sabonete num supermercado, ganhou
as manchetes dos jornais do Brasil e do exterior. Já recebeu homenagem
no Egito e volta e meia é convidada a dar entrevistas para órgãos da
imprensa internacional, como a BBC de Londres. Agora, prestes a
completar 70 anos e faltando apenas um mês para se aposentar, Luislinda
confessa que não pensa em parar de trabalhar e ainda conserva a mesma
determinação que desde sempre a acompanhou quando fala de seus planos
para o futuro:
- Quero ser a primeira negra presidente da República. Gosto de me testar para ver se a vida está valendo a pena.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/pais/defensora-dos-afrodescedentes-toma-posse-como-desembargadora-3502627#ixzz1hMWlKFbS
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